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Direitos e Julgamentos
Categories: Geral

Por Pablo Almadanosso correspondente em Portugal

No momento em que se avizinha a decisão presidencial do 2º turno, o fator da continuidade de políticas públicas tem tido um efeito pouco menos importante do que as “temáticas da moda”, que exigem um posicionamento ideológico dos candidatos. Alinha-se assim um trato mediático de espetacularização social, da experiência de gestão e do sucesso político, como critérios decisivos.

Alinhado a isso, a definição do eleitorado – justamente àquele que no 1º Turno era partidário de Marina Silva (diga-se de passagem, um eleitorado bastante conservador e “crente” de uma democracia representativa personalista e moralista) – parece ter seguido pela afirmação de valores conservadores e a desconsideração de que o Brasil é um Estado Democrático e por isso, laico.

O tema do aborto, muitas vezes tratado de forma conservadora e religiosa, tem seu fundamento no Direito a Vida, seguindo uma naturalização jurídica sobreposta à um princípio religioso. A vida começa no embrião, sendo, a partir desse momento, um detentor de direito à sua capacidade de existir, mas dependente da tutela de seus genitores para o seu desenvolvimento. A incapacidade de tratar o “ato fundante” de vida indissociável do direito do ser genitor, como mostra a tradição jurídica, leva-se a cometer o erro de que esse ser não é tutelado pelo gerador de sua vida (mãe), mas sim o Estado: é ele que impede que se atente contra a vida desse novo ser, regulamentando a proibição do aborto. O debate político tem revelado que ao “ser” tem que se dar a vida, como um imperativo religioso (cristão) juridicamente fundamentado, independentemente em que condições sociais a geração da vida fora feira.

Naturalmente, não se está defendendo o aborto, como um fim em si mesmo, como se tem feito nas campanhas políticos-publicitários do esquerdismo decadente e despolitizador. Defende-se sim, a liberdade e a autonomia, para que as vítimas de estupro ou de violência tenham o direito de abortar, para que não legitimem o ato de criminalidade à que seu corpo foi submetido. Muito menos, que a prática abortiva existente clandestinamente em todo o Brasil (como no mundo), tenha que continuar a ser “desconhecida” pelas autoridades.

Em um Estado Democrático, a criminalização não deve incidir sobre a vítima, mas sobre a relação e ao processo social que permitiu a geração de uma vítima e um algoz. A criminalização do aborto tem sido bastante divulgado em tom ideológico de Direito à Vida, por parte de ambos os candidatos, num misto de direito, horror ao abominável e religião, assim como foi tratada a pedofilia, o impedimento do uso de preservativos pela Igreja Católica e a como anos é tratada a pena de morte – defendida por uma ala de extrema direita, de demarcado autoritarismo em sua própria fala. Trata-se, portanto, de um período de indefinição.

Mas, é nesse mesmo interstício de indefinição democrática e política, que a fórmula consagrada de “menos politica e mais polícia” – referida de Benjamin à Rancière, de Agambem à Francisco de Oliveira – se afirma no projeto de Segurança Pública brasileira. O aumento das segurança das perigosas Fronteiras relacionadas ao tráfico de drogas, de armas e de seres humanos é também o mesmo argumento que se utiliza para a segregação social, étnica e racial em espaços urbanos e rurais, aumentando, com isso, as várias desigualdades sociais. A criminalização dos movimentos sociais, de grupos indígenas, de outros milhões de excluídos é o principal fator que tenciona uma reforma mais séria no sistema político e jurídico brasileiro, devendo-se afastar a polícia da noção de política. Essa indefinição entre polícia e política, cujo principal expoente foi o AI-5, foi o mesmo que fez com que os dois candidatos lutassem contra a Ditadura Militar brasileira.

E Hoje, suas campanhas, parecem reforçar a mitificação de um tempo histórico longínquo, em que a aspiração pela liberdade cessou com a Constituição Federal de 1988 e a hipotética realização da superação das diferenças e do reconhecimento das desigualdades. Se por um lado, Serra foi, em 1963, militante estudantil e Presidente da UNE através da Ação Popular (vertente mais politizada do “socialismo humanista” no Brasil), inserindo uma luta mais política no interior das fracções estudantis; Dilma foi, no final dos anos 1960, militante de várias organizações esquerdistas clandestinas, que seguiam uma esquerda terrorista, uma via reforçada pela repressão e arbítrio do AI-5 e pelo desmantelamento das organizações estudantis.

Um pequeno esclarecimento (que deveria ter sido feito pelo PT, mas que sempre passou em branco, já que a campanha política é de comoção e não de convencimento): fala-se aqui terrorismo, como uma resposta das massas a degeneração da esquerda no período posterior à 1968, em que se buscou uma ação direta armada influenciada pelos movimentos de guerrilha na América Latina (Cuba) e em África, originária de incorporações européias, como o Baader Meinhof na Alemanha (MAF) e de Salvador Puig-Antig na Catalunha ou do VAR-Palmares e MR-8 no Brasil. Essa ideologia política misturou a desilusão dos slogans libertários contrários à sociedade de controle utilizando-se da equiparação através do uso armamentista com o das forças armadas dos Estados. Historicamente, foi significativo para a manutenção de lutas extra-parlamentares e não-institucionais em vários países, possibilitando a emergência de novas configurações da Democracia, como a Democracia Participativa, operada atualmente em vários municípios brasileiros e em outros tantos pelo mundo. Esse terrorismo difere radicalmente do Terrorismo de Estado, do qual se poderia colocar sob suspeita as ações de Dilma como iguais àquelas da Al-Qaeda ou do ETA – assim como seguiu nas correntes via mail, impostoras e deturpadoras da história política brasileira.

Mas porque, dois candidatos que tiveram, cada um ao seu modo, contribuições fundamentais para a construção democrática brasileira, preferiram optar por programas eleitorais conservadores? A resposta para Serra parece clara, sem qualquer culpa da Social-Democracia, já hoje tão descaracterizada e decadente. A resposta para Dilma, permanece muito mais complexa e enevoada. Não se liga diretamente ao enveredamento à direita dos partidos políticos rotulados de esquerda: falácia construída não porque a política econômica de Tatcher e Reagan impunham o TINA (“there is no alternative”) à classe trabalhadora nos anos 1980, mas porque a incapacidade de reorganização e afastamento da ortodoxia do Século XIX e de início do Século XX sempre foi, em ultima instância, impensável para a esquerda mundial, esquivando-se de pensar o caráter totalitário do socialismo soviético e “imune” à crítica colonial e imperialista do Terceiro Mundo. Da mesma forma, sempre foi impensável para grande parte dos personagens da esquerda brasileira afastarem seus pressupostos em relação ao cristianismo, imbuído de religiosidade popular, mas que nutre em seus corações o respeito por valores que se contrapõem com os da Democracia.

Se assim proferido, veremos em poucos dias a chegada ao poder de um “sessenteioitista” latino americano, que luta em nome dos valores da família e da vida, assim como já ocorrido em alguns países da Europa. Sai a personificação da classe trabalhadora (já imbuída da religiosidade popular), entra a personificação de 1968 (dita cética, mas no fundo religiosa). Passemos então, como diz o politólogo norte-americano, Paul Berman, ao “julgamento da Geração de 1968”, ao especto da idealização da classe trabalhadora. E em ambos os casos (na passagem do “operário” ao sessenteioitista social-democrata ou ao sessenteioitista extrema-esquerda), não foi desconstruído o princípio do qual falei aqui no início, a indiferenciação entre religião e direito. Com o julgamento do “Direito à Vida” não realizado, o julgamento geracional tende a ser esvaziado.

1 Comment to “Direitos e Julgamentos”

  1. Many thanks for your review! Actually I have never read anything that interesting.