Sem trololo
empreitada da ação comunicativa: para quem tem alguns minutos para discutir política
Do interesse pela (e da) política – Segunda Parte
Categories: Geral

Por Stella

A primeira parte desse texto teve como objetivo esclarecer que: as decisões não são tomadas aleatoriamente, tampouco são condicionadas e dirigidas por uma ética ou uma moral universal. Na política, os interesses que regem as tomadas de decisão são condensados no que podemos chamar de projeto político. Nesse post, vou tentar esclarecer o que é (e o que pode ser), afinal de contas, um projeto político.

No final dos anos 1980, um projeto político começa a ser desenhado no Brasil, abraçado por intelectuais, artistas, movimentos sociais, políticos e toda uma gente de esquerda: o projeto político democrático. Construído em oposição ao regime militar, após 20 anos de ditadura (de 1964 a 1985 – notem como nossa democracia é muito recente), esse projeto político democrático se expressa bem nas bandeiras de lutas dos movimentos sociais de então e na Constituição de 1988. Uma das principais expressões desse projeto é a reivindicação de direitos: direito a educação, a moradia, a saúde… E o direito a ter direitos. É nesse ínterim, também, que o PT é criado.

Paralelamente a esse processo de consolidação jurídica e cidadã de direitos, e na sua contramão, outro projeto político desembarca no Brasil – sim, porque esse é um ponto importante: os projetos polítios coexistem e estão em disputa, o tempo todo, se enlaçando, se mesclando, se dissociando e se reunindo outra vez. O projeto que desembarca aqui, então, nesse momento de redemocratização, e que toma fôlego a partir do governo Collor, é o projeto neoliberal.

O projeto neoliberal tem como eixo desresponsabilizar o Estado das suas obrigações. Educação, segurança, moradia, saúde: o quê o Estado tem a ver com isso? A palavra de ordem é: cortar gastos, alegando que o Estado “não funciona”, que está muito burocratizado etc e tal. E então nada mais coerente do que cortar os gastos sociais.

Acontece que tanto a redemocratização como o neoliberalismo tem uma coisa que, se num primeiro momento parece ser comum aos dois projetos, no segundo se mostra como uma “confluência perversa” (o termo está entre aspas por que não é meu, mas sim de uma professora e pesquisadora da Unicamp). É o que chamamos de participação. Na democracia, a participação popular aumenta, as instituições públicas criam espaços de participação para as pessoas que não estão oficialmente participando da política institucional – pessoas como eu e você, que não somos vereadores, senadores ou deputados, podemos acompanhar as reuniões do Conselho de Habitação, do Conselho do Idoso, ouvir o que está sendo dito, dizer o que temos a dizer… Se somos ouvidos de fato nesses lugares é uma outra discussão que faremos mais adiante. Mas o fato é que esses lugares são criados, e ao menos alguma participação é reivindicada e permitida – todos lebramos que na ditadura qualquer manifestação contrária ao governo terminava em tortura, mortes… E os próprios partidos contrários ao regime foram proibidos de se manifestar, e não-reconhecidos como partidos.

Pois o neoliberalismo, ao desresponsabilizar o Estado de suas obrigações sociais, também vai propôr uma participação da sociedade civil (das pessoas que não fazem parte do aparato estatal). E aí entram algumas ONGs, entra a participação voluntária e a filantropia: pessoas tomando para si problemas urgentes, propondo soluções paliativas, temporárias e privadas para questões que deveriam ser trabalhadas em âmbito público e estatal.

Assim, se o regime democrático garante por lei liberdade de organização e expressão, abre os espaços institucionais e amplia a participação popular na esfera pública, a agenda neoliberal esvazia essa mesma esfera pública de um conteúdo ético – ou da consonância com o projeto político democrático… Abandonam-se os critérios de justiça em nome dos critérios de eficácia – a primazia do cálculo e o convite à prática filantrópica, num Estado desresponsabilizado. A ampliação da participação política é bem-vinda e performada tanto pelo regime democrático quanto pela agenda neoliberal; mas essa perversa combinação escamoteia diferentes conceitos de política e diferentes qualidades de participação.

Então vamos juntar as peças: o neoliberalismo, com seu convite à participação política que mistura e indiferencia deveres públicos e estatais de direitos privados, propõe esse corte de gastos sociais – o que acontece no Brasil, concretamente, no governo FHC. O governo Lula continuou privatizações? Continuou. Mas vamos olhar para o outro projeto político (como eu disse, eles nunca existem em sua “forma pura”, mas se mesclam, confundem, associam e dissociam), o democrático. Para isso, elenco dois elementos que imagino consensuais quando pensamos em democracia: igualdade e liberdade.

No governo FHC, os ricos ficaram mais ricos e os pobres, mais pobres. As oportunidades de ingresso em universidade públicas não aumentaram. Os movimentos sociais foram duramente reprimidos e criminalizado. No governo Lula, muitos brasileiros deixaram de morrer de fome, e a distância entre os mais ricos e os mais pobres diminuiu. Muitas universidade públicas foram criadas, e o acesso a elas, feito via enem. Os movimentos sociais foram reprimidos e criminalizados? Foram, sim. Mas famílias foram assentadas, o diálogo foi possível e, se Lula fosse uma monstruosidade no trato com os movimentos sociais, eu imagino que a direita não criaria os boatos que cria, de que o MST, por exemplo, um dos maiores e mais importantes movimentos sociais do Brasil, ‘mama nas tetas do governo’ e tem Lula como maior aliado político.

Então esse rápido levantamento (posso publicar as fontes oficiais de cada informação disso, depois) indica que, se o governo Lula e FHC são algo convergentes no que diz respeito à implantação do projeto neoliberal, há diferenças qualitativas, principalmente no que diz respeito ao comprometimento de seus governos (e de seus partidos, é importante lembrar) com as conquistas democráticas que o Brasil tem cunhado, nos últimos 25 anos. São nuances como esses que valem a pena serem lembrados por quem está comprometido com a luta por um Brasil mais democrático, em que a distribuição de renda seja menos desigual e a liberdade de expressão política, garantida. Para coroar este texto, cito uma frase de Serra desses últimos dias: “[se eleito, o Brasil terá] o campo em paz, sem bonés do MST”.

Comments are closed.